De coração

Aqui em cima a água corre um bom tempo enfiada nas pedras. Vaza em nascentes várias. Cai por ângulos retos, escorre por lajes lisas e se trança de novo em correnteza, redemoinho. Um ou outro remanso de nada, que não há tempo, é preciso descer, descer. Quando começa a estrada, o riachinho já encontrou duas ou três outras águas. E bate na quarta, todas se engolem e seguem, seguem, num valezinho que já tem alguma margem. Mais adiante tudo se suaviza, o declive se rende, a correnteza grossa se espalha e descansa, a estrada é quase plana. Pode-se sentir o cheiro das árvores misturado ao de lenha queimada. É que já há casas, roças, um pouquinho de gado, galinheiros e a gente esparsa do campo. Na estrada que chega à cidade, um riacho encorpado é entregue ao rio do vale principal. Então já é leito de areia, volume sinuoso e às vezes escuro. É rio que recebe água de muitas serras, de incontáveis riachinhos, cursos, fios d’água que fluem pelos vincos destas terras, incessantemente. É ele, rio, que vai chegando triunfante na cidade, potente, penetrando a tubulação municipal, invadindo os canos das casas, a comida das pessoas, seus corpos, sua vida. Na estrada poenta vez por outra passa um carro ou um caminhão. Pessoas vão a pé ou vêm carregando sacolas. Homens passam apressados a cavalo, outros são espectros de bicicleta, quase sumidos na poeira suspensa. Cruza-se a ponte, chega-se ao calçamento. Lá adiante, além do casario, na saída da cidade, o rio segue, recebendo das pessoas a volta da água e de mais serras mais águas novas. A partir dali seu ronco compete com o dos carros sobre o asfalto. A água nem se lembra destas pedras daqui de cima, deste besouro sob o sol, dos vales que se emendaram, da estrada, do que quer que seja antes, durante ou depois.

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